A complexidade do Édipo muito além do seu complexo

Édipo e a Esfinge, ilustração de 1879 da Stories from the Greek Tragedians de Alfred Church/Wikipedia

Para o senso comum, o complexo de Édipo é um conceito que explica, entre outras coisas, como e por que um homem se apaixona por uma mulher que se parece com sua mãe. Pode ser ao contrário, demonstrando as preferências sexuais da mulher por parceiros que lembrem seu pai ou irmãos. Esse é o retrato popular do Édipo, juntamente, é claro, com o parricídio e o incesto, comportamentos tidos como perversão e criminalidade. Mas o Édipo é complexo, e vai muito além disso.

Uma análise profunda a esse respeito é feita por Marco Antonio Coutinho Jorge em seu Fundamentos da Psicanálise, volume 2. Obra a qual recomendamos fortemente a leitura.

Coutinho Jorge faz uma releitura da tragédia Édipo rei, de Sófocles, confrontando dois pontos de vista: o de um historiador (Jean- Pierre Vernant) e o de um psicanalista (Didier Anzieu). Dessa mistura de olhares, nasce um Édipo tão rico, que o senso edípico popular (e até o psicanalítico comum) ficam extremamente reduzidos. Em outras palavras, matar o pai e transar com a mãe é uma interpretação absolutamente redutora. Podemos ir muito além e usar esse paradigma para pensar outras questões, inclusive atuais.

Quem era Édipo?

Sua história é contada na peça de Sófocles, a qual se inicia com o povo aclamando pelo fim de um período de calamidades em Tebas, cidade onde o rei Édipo governa. Como ele se torna rei naquele lugar, vai se desenrolar na trama. Édipo pede ao cunhado, Creonte, consultar o oráculo no templo de Apolo para saber o que fazer para salvar o povo do sofrimento. O oráculo responde que aquelas terras precisavam ser lavadas do sangue do assassinato de Laio, o príncipe que reinava naquele lugar antes de Édipo. Era preciso encontrar seu assassino.

O assassino de Laio, que sabemos muito bem quem é, vai entrando em um labirinto de descobertas onde alguns personagens, como o Coro e o Corifeu, nos dão a impressão de que Édipo conversa respectivamente com seu inconsciente e com seu superego. O Coro que coloca panos quentes enquanto a verdade vai se descobrindo, e o Corifeu que pede cautela e justiça. Mas isso é apenas uma das tantas interpretações que podemos dar. Há outras, a de que, por exemplo, seja o Oráculo o inconsciente, uma metáfora muito interessante no desvendar desse mistério, afinal, o grande enigma inicial e fundamental que Coutinho Jorge coloca é: Édipo sabia que era filho adotivo?

Saber sem saber que sabe

Tudo começa com essa pulga atrás da orelha e é o próprio Édipo quem nos conta de sua desconfiança em um diálogo com Jocasta, sua mãe e esposa, no auge da trama, a poucos passos do desvendar da tragédia.

Édipo diz ser filho de Políbio e Mérope, rei e rainha de Corinto. Quando jovem, um dia em uma festa, um convidado bêbado diz que Édipo era filho adotivo. Desconfiado, Édipo pergunta a seus pais e estes negam veementemente a hipótese. Não convencido da resposta, Édipo se dirige no dia seguinte ao oráculo de Delfos para desfazer suas dúvidas. Mas o oráculo não responde diretamente, diz apenas que Édipo assassinaria seu pai e se casaria com sua mãe. É nesse momento que Édipo decide escapar e fugir de Corinto mas, durante a fuga, encontra-se exatamente com seu destino.

Uma questão de origem

E é assim que os destinos se encontram nas encruzilhadas da vida. Aquela história que seríamos todos filhos dos desejos desejados, ainda que esses desejos tenham sido amaldiçoados.

Laio era filho de Lábdacos, rei de Tebas assassinado por tiranos. Com a morte de seu pai, órfão e sobrevivente aos dois anos, Laio é abandonado na terra do rei Pelopes que o adota e o trata como filho. Mas um dia, o rei entrega Crísipo, seu filho adolescente, para Laio já adulto educar. Laio se apaixona pelo irmão adotivo e o rapta.

Pelopes lhe lança uma maldição: “Se tiveres um filho, ele te matará e toda a tua descendência desgraçada será.” Quando Jocasta, mulher de Laio, fica grávida, o marido decide matar o bebê com medo que a maldição de seu pai adotivo se realizasse. Mas o bebê, ironia do destino, não morre e será adotado por um rei e uma rainha. Ou seja, Laio, assim como Édipo, também foi uma criança abandonada, pega em adoção por um casal da realeza.

Um detalhe interessante era que Lábdacos, pai de Laio e avô de Édipo, era manco, um traço que o aproxima de seu neto, cujo nome, Oidípous, significa em grego, pés inchados. E o menino Édipo, de fato, tinha sido amarrado pelos pés e abandonado em uma árvore para morrer, levando consigo o claudicar como marca histórica.

Então, Laio que perdera seu pai ainda bebê e foi salvo por Pelopes, infringindo a lei dos deuses e dos homens ao trair o pai e seduzir o irmão, foi destinado a pagar por seu crime na mesma moeda.

Mas quem era esse destino? De onde vinham esses castigos? Dos deuses ou do próprio inconsciente? São muitas as simbologias contidas nessa trama, não à toa Freud a escolheu como paradigma.

A herança psíquica

A história de Édipo é um drama com traições, mentiras, assassinatos, incestos e parricídio. Não teria sido um clássico se não espelhasse o homem em sua dinâmica familiar. A trama explica o “destino” das histórias que se repetem como se veredictos fossem, como se as palavras ecoassem de geração em geração, estruturando sentenças.

Édipo repete a história do pai que repete a do avô. Quantas vezes isso é visto na clínica? Pois a complexidade de Édipo vai muito além de seu próprio complexo.

Sugestões de Leitura:

SÓFOCLES. Édipo Rei – Antígona. São Paulo: Martin Claret Editora, 2007.

COUTINHO JORGE, Marco Antonio. In: O saber de Édipo. Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan, v. 2: a clínica da fantasia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000. p. 186-198.

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